Em Angola, queria trabalhar à noite e falhava a luz, só de velas. Estive cinco dias sem tomar banho, a lavar-me só com o creme do corpo”
A lição de vida sobre partilha que um pequeno grupo de crianças mutiladas pela guerra lhe deu, em Angola, levou Jorge Paixão, de 56 anos, a abraçar causas sociais, não só em África como na China.
O treinador português que lidera a equipa do Rayon Sports, no Ruanda, fala sobre essas experiências fora de Portugal, mas também da sua passagem no sítio certo mas à hora errada pelo SC Braga.
Da Madeira foi treinar o Recreativo do Caála, de Angola. Como surgiu essa oportunidade?
Recebi uma chamada do Carlos Janela, que era empresário e tinha sido também diretor de clubes. O Caála procurava treinador e veio a Portugal entrevistar cinco treinadores.
Dos cinco que entrevistaram, eu era o único que ainda não tinha treinado ligas profissionais. Mas eu já fazia um documento do meu trabalho, como se fosse o meu bilhete de identidade, e quando fui à entrevista no Hotel Sheraton levei esse dossiê. Estava lá o meu modelo de jogo, como treinava, como organizava, todo o meu trabalho. Conversámos e o presidente disse-me no final da entrevista: “Mister, gostei muito de falar consigo.
Tenho de lhe dar os parabéns, você foi o único treinador que trouxe alguma coisa para nós vermos”. Passados dois dias ligaram-me a dizer que eu tinha sido o escolhido.
O que o levou a aceitar?
O desafio era giro e eu nunca tinha treinado uma liga profissional, nunca tinha tido a oportunidade, porque não tinha empresários, nunca andei nos meandros, nunca andei pela rua escura, andei sempre pela rua clara, nunca andei a ligar para diretores a dizer que queria treinar, nunca fui ver jogos de colegas meus quando eles estavam na corda bamba. Nunca andei a proporcionar encontros nas alturas certas, nunca me vendi a ninguém, nunca me prostitui, por assim dizer.
Quando fui para Angola, era uma grande oportunidade, porque ía para um país estrangeiro, com um contrato muito bom financeiramente, nada a ver com o que ganhava aqui.
Sentiu um grande choque quando aterrou em Angola?
Enorme. A guerra não tinha acabado há muito tempo, passei muito mal, mas gostei muito.
O primeiro choque foi quando cheguei e vi uma cidade parcialmente destruída.
Huambo.
Sim, Huambo. Para ter uma ideia, as pessoas foram mostrar-me uma casa para habitar e a entrada do prédio tinha um buraco de uma bomba, não havia porta, não havia nada, era um buraco.
Começamos a subir as escadas e era aos saltinhos, porque faltavam degraus. Não podia viver ali. Fui para um aparthotel onde vivíamos todos, jogadores incluídos.
Não me sentia muito confortável porque parecia que estava a controlar os jogadores a toda a hora. Levaram-me depois para outro local que não era mau, mas tinha algumas dificuldades. A seguir fui viver para o hotel Ritz do Huambo, que de Ritz só tinha o nome.
Então?
Eu estava no 3.º andar e todos os dias tinha de ir pelas escadas porque não havia luz para o elevador; limpavam-me o quarto de 15 em 15 dias. E era um hotel novo.
A seguir encontrei uma casa e fui viver para lá com o adjunto Nuno Guia e o fisioterapeuta. A casa era uma moradia antiga, na zona alta do Huambo, mas ainda se viam os buracos das balas nas paredes. Resumindo, eu não tinha água a maior parte das vezes, nem luz.
Acabava o combustível do gerador muitas vezes quando estávamos a trabalhar à noite e tínhamos de acender uma vela.
Todo direito: Jornal Expresso.